Inatacável para quem chegava com más intenções no passado. Inatacável, nos dias que correm, para quem chega na pele do crítico gastronómico de algibeira do “vamos lá ver se é digno de uma estrela Michelin“. O hotel restaurante Fortaleza do Guincho deixou-nos quase desarmados de palavras para descrever o que por lá vivemos. É com algum esforço e alguma contrariedade que aqui as partilhamos.
Tal como o amor não se exprime por palavras, há experiências sensoriais que são de difícil definição. Ou que preferimos guardar para nós, bem arrumadas e catalogadas na memória, sem partilha e lugar a contraditório. Mas quando partimos na missão de colocar por escrito aquilo que vivemos, não nos resta outra saída que não a de tentar fazê-lo o melhor possível. Assim seja.
Chegámos ao Fortaleza do Guincho ao final da tarde, com o pôr-do-sol como meta. O microclima que envolve a fortaleza recebeu-nos de braços abertos e empurrou-nos literalmente para o interior acolhedor. Tentámos ainda novas investidas ao exterior, para sentir o cheiro do mar, registar as cores do céu e a imponência do edifício, mas rapidamente concluímos – até porque os casacos polares tinham ficado em casa – que do interior também podíamos usufruir toda a beleza envolvente. No quarto, no bar, na sala de estar, o mar e a natureza agreste do Guincho estão sempre ao alcance, numa janela por perto, a impor-se a uma decoração de interiores talvez demasiado clássica, mas contextualizada e sem qualquer beliscadura no que ao conforto diz respeito.
Não foi assim ainda desta vez que experimentámos o bar-esplanada e a sua nova carta, mais leve e acessível do que a carta do restaurante. Recolhemo-nos no interior e guardámo-nos para o banquete que nos estava reservado. O vento forte do exterior, esse, parecia figurante contratado para fazer ainda mais apetecível o refúgio e a refeição reconfortante.
A mesa, esse grande palco de Miguel Rocha Vieira
Passemos então à mesa, que é onde tudo acontece neste hotel. Em pouco tempo começa o desfilar de receitas assinadas por Miguel Rocha Vieira, num espetáculo que dá vontade de aplaudir de pé. A primeira graça do Chef português, que é o digníssimo sucessor de Antoine Westermann e de Vincent Farges, evidenciou a intenção de colocar à mesa os sabores do Atlântico e as tradições portuguesas. Apresentaram-nos um peixe seco ao sol num paneiro, em homenagem à tradição da Nazaré, mas a encenação serviu apenas para dar a provar uma pequena iguaria que o acompanhava, uma brandade de carapau e grão sobre um crocante de tinta de choco. Noutro canto da mesa estava uma pequena caixa de batatas a imitar as que se usam para grelar até poderem ser semeadas de novo, onde se sobrepunham as batatas-doces de degustação. A compor este trio de entradas, uns deliciosos pastéis de massa tenra de safio. A acompanhar, um shot de cerveja artesanal da Serra da Estrela.
O amuse bouche que se seguiu revelou-se um autêntico mergulho no mar e exigiu da nossa parte grande autocontrolo para não “mandar vir mais cinco iguais”. Foi apresentado como O “Habitat dos Percebes” e consistia numa feliz comunhão de percebes, cogumelos, funcho e tártaro de laranja, colocada num ninho de algas. Mas havia ainda mais. Um pimento da estação recheado de cabeças de peixe e ainda um conjunto de manteigas disfarçadas de percebe, de amêijoa, de búzio e de mexilhão.
Resolvidas as entradas, apresentou-se um suculento carabineiro, perfumado com cenouras e citrinos. Acompanhava-o um divinal vinho verde Quinta do Regueiro Primitivo Alvarinho 2014. Seguiu-se um pargo com cevadinha (cozinhada como um cremoso risotto) e funcho. A acompanhar, um Quinta do Grifo Grande Reserva 2013.
Limpou-se o palato com um guloso escabeche de mexilhão com sorbet de pepino, antes de avançar para o prato de carne. A representar a dita, um porco preto “Da Cabeça aos Pés”, com uma peça do lombo e terrinas variadas, acompanhadas de um xerém de amêijoa e barbas de milho em calda de açúcar. Em perfeita harmonia, um tinto suave, Tiago Cabaço Vinhas Velhas 2013.
À sobremesa, o mar voltou a chegar à mesa, personificado nas “Dunas do Guincho”. Perante os pormenores, como a areia feita de pinhão e as pequenas pinhas de resina e guianduja, não resistimos a perguntar quantas pessoas estavam na cozinha a preparar tudo aquilo. Ficámos a saber que o Chef conta com um batalhão de vinte cozinheiros. Mais descansados, avançámos para a segunda sobremesa, uma homenagem de Rocha Vieira à sua infância, feita de tigeladas e ameixas Rainha Cláudia.
Ao fim de quase três horas, sem lugar a tempos de espera, terminou esta inesquecível exibição de cozinha. Deixámos o restaurante com a certeza de que tínhamos vivido um momento especial, quem sabe, irrepetível, como se quer numa refeição de degustação (com harmonização de vinhos) que varia, consoante o número de pratos, entre 140€ e 195€.
O conforto Relais & Chateaux
Por maior que seja o protagonismo do restaurante, não podemos distrair-nos do charme e simpatia do hotel de cinco estrelas que o acolhe, nem do prazer que se sente ao acordar em pleno Guincho, com o sol a espreitar da janela e a praia vazia a chamar por nós.
O banquete da véspera pedia alguma atividade física e a solução estava à porta do hotel: uma ciclovia que se estende por quilómetros ao longo da costa e bicicletas prontas a usar. Assim, imediatamente após um pequeno-almoço que tinha muito mais para dar do que nós conseguíamos suportar, saltámos para as bicicletas e “penitenciámo-nos” com um passeio há muito desejado. De pulsação acelerada, pulmões cheios da brisa do mar e de ânimo renovado, despedimo-nos com a certeza de termos sido conquistados pela fortaleza.
Ana Pinheiro